segunda-feira, 11 de junho de 2012

Leitura online "A cabana" pg10 á pg37

leitura online
 a cabana pg10 á pg37




Treze anos é muito pouco, porém Mack não tinha
muitas opções e se adaptou rapidamente. Ele não fala
muito sobre os anos seguintes. A maior parte foi
passada fora do país, trabalhando pelo mundo,
mandando dinheiro para os avós, que o repassavam à
mãe. Acho que desses países distantes chegou a
pegar em armas e participar de algum conflito
terrível; desde que o conheço, ele odeia a guerra com
um fervor sinistro. Seja lá o que for que tenha
acontecido, aos 20 e poucos anos foi parar num
seminário na Austrália. Quando Mack se fartou de
teologia e filosofia, retornou aos Estados Unidos, fez
as pazes com a mãe e as irmãs e se mudou para o
Oregon, onde conheceu Nannete Samuelson e se
casou com ela.
Neste mundo de faladores, Mack é pensador e
fazedor. Não diz muita coisa, a não ser que alguém
pergunte, o que pouca gente faz. Quando fala, dá a
impressão de ser uma espécie de alienígena que vê a
paisagem das idéias e experiências humanas de modo
diferente de todas as outras pessoas.
O que acontece é que as coisas que ele diz causam
certo desconforto em um mundo onde a maioria das
pessoas prefere escutar o que está acostumada a
ouvir, o que freqüentemente não é grande coisa. Os
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀔􀀓
que o conhecem geralmente gostam muito de Mack,
desde que ele mantenha guardados seus
pensamentos. Porque as coisas que Mack diz nem
sempre deixam as pessoas muito satisfeitas com elas
mesmas.
Uma vez Mack me contou que quando era jovem
costuma se abrir com mais liberdade, mas admitiu
que a maior parte dessas conversas fosse um
mecanismo de sobrevivência para encobrir suas
feridas. Freqüentemente acabava derramando a dor
sobre quem estivesse por perto. Disse que tinha
prazer em apontar as falhas das pessoas e humilhá-las
para manter seu sentimento de falso poder e controle.
Nada muito elogiável.
Enquanto escrevo estas palavras, reflito sobre o
Mack que sempre conheci: um sujeito bastante
comum e certamente sem nada de especial, a não ser
para os que o conhecem de verdade. Vai fazer 56
anos e não chama a atenção, está ligeiramente acima
do peso, é meio careca, baixo e branco - uma
descrição que serve para muitos homens dessas
redondezas. Você provavelmente não o notaria numa
multidão nem se sentiria incomodado sentado ao seu
lado enquanto ele cochila no trem que o leva à cidade
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀔􀀔
para a reunião semanal de vendas. Faz a maior parte
de seu trabalho num pequeno escritório em sua casa
na Wildcat Road. Vende alguma engenhoca de alta
tecnologia que eu não pretendo entender: trecos
eletrônicos que de algum modo fazem tudo andar
mais depressa, como se a vida já não fosse rápida
demais.
Você só percebe como Mack é inteligente quando,
por acaso, escuta um diálogo dele com um
especialista. Já vivi algumas situações dessas quando
a língua falada mal parecia com a nossa e eu me via
lutando para captar os conceitos que jorravam como
um rio de jóias despencando de uma cachoeira. Ele
consegue falar com inteligência sobre quase tudo e,
apesar da força de suas convicções, Mack tem um
modo gentil e respeitoso que deixa você manter as
suas.
Seus assuntos prediletos são Deus, a Criação e por
que as pessoas acreditam em determinadas coisas.
Seus olhos se iluminam e seu sorriso repuxa os
cantos dos lábios para cima. De repente, como se
fosse um garotinho, o cansaço se dissolve e ele
rejuvenesce, praticamente incapaz de se conter. Mas,
ao mesmo tempo, Mack não é muito religioso. Parece
ter uma relação de amor e ódio com a religião e
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talvez até com Deus, que ele imagina como um ser
mal-humorado, distante e altivo. Pequenas gotas de
sarcasmo escorrem às vezes pelas rachaduras de seu
reservatório, como dardos cortantes cheios de
veneno. Embora algumas vezes nós dois vamos
juntos à mesma igreja, dá para ver que ele não se
sente muito à vontade lá.
Mack está casado com Nan há pouco mais de 33
anos - na maior parte do tempo, eles são felizes. Diz
que ela salvou sua vida e pagou um preço alto por
isso. Por algum motivo que não dá para
compreender, Nan parece amá-lo agora mais do que
nunca, apesar de eu ter a sensação de que ele a
magoou de algum modo terrível nos primeiros anos.
Acho que, assim como a maior parte
das nossas feridas tem origem em nossos
relacionamentos, o mesmo acontece com as curas, e
sei que quem olha de fora não percebe essa bênção.
De qualquer modo, Mack se casou. Nan é a
argamassa que mantém juntos os ladrilhos de sua
família. Enquanto Mack lutou num mundo com
muitos tons de cinza, o dela é principalmente preto e
branco. O bom senso é tão natural para Nan que ela
nem consegue perceber o dom que isso representa.
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀔􀀖
Ter uma família a impediu de realiza seu sonho de
ser médica, mas ela se destacou como enfermeira e
obteve reconhecimento considerável em seu trabalho
com pacientes terminais com câncer. Enquanto o
relacionamento de Mack com Deus é amplo, o de
Nan é profundo.
Esse casal contraditório teve cinco filhos de beleza
incomum. Mack gosta de dizer que todos pegaram à
beleza dele, "... porque Nan ainda conserva a dela".
Dois dos três meninos já saíram de casa: Jon, casado
há pouco, trabalha como vendedor de uma empresa
local, e Tyler, recém- formado na faculdade, está
fazendo mestrado. Josh e uma das duas garotas,
Katherine (Kate), cursaram a escola comunitária
local. E a que chegou por último é Melissa - ou
Missy, como gostávamos de chamá-la. Ela... bem,
você vai conhecer melhor alguns dos filhos de Mack
ao longo deste livro.
Os últimos anos foram... como é que posso dizer...
Notavelmente peculiares. Mack mudou: agora está
ainda mais diferente e especial. Durante todos os
nossos anos de convívio ele sempre foi bastante
gentil e amável, mas desde a estada no hospital há
três anos ficou... bem, melhor ainda. Tornou-se uma
daquelas raras pessoas que estão totalmente à
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀔􀀗
vontade dentro da própria pele. E eu também me
sinto mais à vontade perto dele do que de qualquer
outra pessoa. Cada vez que nos separamos, tenho a
sensação de ter tido a melhor conversa da minha
vida, mesmo que eu tenha falado mais. E, a respeito
de Deus, Mack não é mais simplesmente amplo.
Ficou muito profundo. Mas o mergulho custou caro.
Os dias de hoje são muito diferentes de há sete ou
oito anos, quando a Grande Tristeza entrou em sua
vida e ele quase parou de falar. Mais ou menos nessa
época, e por quase dois anos, nossos encontros foram
interrompidos, como se por um acordo mútuo não
verbalizado. E via Mack de vez em quando na
mercearia ou, mais raramente ainda, na igreja. E,
embora em geral trocássemos um abraço educado,
não falávamos de muita coisa importante. Para ele era
até difícil me encarar. Talvez não quisesse entrar
numa conversa capaz de arrancar a casca de se
coração ferido.
Porém tudo isso mudou depois de um acidente feio
com... Mas lá vou eu outra vez botando o carro na
frente dos bois. Vamos chegar lá no devido tempo.
Basta dizer que estes últimos anos parecem ter
devolvido a vida de Mack e tirado o fardo da Grande
Tristeza. O que aconteceu há três anos mudou
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totalmente a melodia de sua vida e é uma canção que
mal posso esperar para tocar.
Apesar de se comunicar bastante bem verbalmente,
Mack não se sente seguro sobre sua capacidade de
escrever - algo que ele sabe que me apaixona. Por
isso, perguntou se eu escreveria esta história, a
história dele "para as crianças e para a Nan". Queria
uma narrativa que o aju-dasse a expressar para eles a
profundidade de seu amor e que os ajudasse a
entender o que havia se passado em seu mundo
interior. Você conhece o lugar: é onde você está
sozinho - e talvez com Deus, se acredita Nele. É
claro que Deus pode estar lá, mesmo que você não
acredite. Isso seria bem o jeito de Deus. Não é à toa
que ele é chamado de O Grande Intrometido.
A história que você vai ler é resultado de uma luta
minha e do Mack para, durante muitos meses,
colocar em palavras o que ele viveu. Tem um lado
um pouco... digamos, muito fantástico. Não vou
julgar se algu-mas partes são verdadeiras ou não.
Prefiro dizer que, mesmo que algumas coisas não
possam ser cientificamente provadas, talvez sejam
verda-deiras. Mas preciso afirmar honestamente que
fazer parte desta história me afetou de modo
profundo, desvendando detalhes meus que eu
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desconhecia. Confesso que desejo desesperadamente
que tudo o que Mack me contou seja verdade. Na
maioria das vezes eu me sinto próximo dele, mas em
outras - quando o mundo visível de concreto e
computadores parece ser o real - perco o contato e
tenho dúvidas.
Algumas observações finais. Mack gostaria que eu
lhe transmitisse o seguinte recado: "Se você odiar
esta história, desculpe, ela não foi escrita para você."
Mas eu quero acrescentar: afinal, talvez tenha sido. O
que você vai ler é o máximo que Mack consegue
recordar daquilo que acon-teceu. Esta é a história
dele, não a minha. Por isso, nas poucas vezes em que
apareço, vou me referir a mim mesmo na terceira
pessoa - e do ponto de vista de Mack.
Às vezes a memória pode ser uma companheira
enganosa, em especial com relação ao acidente, e eu
não ficarei surpreso se, apesar de nosso esforço
conjunto para contar a história com exatidão, alguns
fatos e lembranças aparecerem distorcidos nestas
páginas. Não é intencional. Garanto que as conversas
e eventos foram registrados do modo mais fiel
possível, de acordo
com as lembranças de Mack. Portanto, por favor,
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀔􀀚
tente não se aborrecer com ele. Como você verá,
essas coisas não são fáceis de contar.
- Willie
UMA CONFLUÊNCIA DE CAMINHOS
Duas estradas se bifurcaram no meio da minha vida,
Ouvi um sábio dizer. Peguei a estrada menos usada.
E isso fez toda a diferença cada noite e cada dia.
Larry Norman (pedindo desculpas a Robert Frost)
Março desatou uma torrente de chuvas depois de um
inverno de secura anormal. Uma frente fria desceu do
Canadá e foi contida por rajadas de vento que rugiam
pelo desfiladeiro, vindas do Leste do Oregon. Ainda
que a primavera certamente estivesse logo ali, depois
da esquina, o deus do inverno não iria abandonar
sem luta seu domínio conquista-do com dificuldade.
Havia um cobertor de neve recente nas Cascades, e
agora a chuva congelava ao bater no chão do lado de
fora da casa. Motivo suficiente para Mack se
enroscar com um livro e uma sidra quente,
aconchegando-se no calor do fogo que estalava na
lareira.
Mas, em vez disso, ele passou a maior parte da
manhã no computa-dor. Sentado confortavelmente
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀔􀀛
no escritório de casa, usando calças de pijama e uma
camiseta, ele deu telefonemas de vendas. Parava com
freqüência, ouvindo o som da chuva cristalina tilintar
na janela e vendo o acúmulo vagaroso mas constante
do gelo lá fora. Estava se tornando inexoravelmente
prisioneiro do gelo em sua própria casa - e com muito
prazer.
Há algo agradável nas tempestades que interrompem
a rotina. A neve ou a chuva gélida nos liberam
subitamente das expectativas, das exigências de
resultados e da tirania dos compromissos e dos
horários. Ao contrário da doença, esta é uma
experiência mais coletiva do que individual. Quase
podemos ouvir um suspiro de alívio erguer-se em
uníssono na cidade próxima e no campo, onde a
natureza interveio para dar uma folga aos exaustos
seres humanos. Todos os afetados pela tempestade
são unidos por uma desculpa mútua. De súbito e
inesperadamente o coração fica um pouco mais leve.
Não serão necessárias desculpas por não comparecer
a algum compromisso. Todos entendem e compartilham
a mesma justificativa, e a retirada súbita de
qualquer pressão alegra a alma.
É claro que as tempestades também interrompem
negócios, e, embo-ra umas poucas empresas tenham
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um ganho extra, outras perdem di-nheiro o que
significa que existem os que não sentem júbilo
quando tudo fecha
temporariamente. Mas é impossível culpar alguém
pela perda de produção ou por não conseguir chegar
ao escritório. Mesmo que a situação só dure um ou
dois dias, de algum modo cada pessoa se sente dona
do seu mundo simplesmente porque aquelas gotinhas
de água congelam ao bater no chão.
Até as atividades comuns se tornam extraordinárias.
Ações rotineiras se transformam em aventuras e
freqüentemente são vivenciadas com maior clareza.
No fim da tarde, Mack se encheu de agasalhos e saiu
para lutar com os quase 100 metros da comprida
entrada de veículos que vai até a caixa de correio. O
gelo havia convertido magicamente essa tarefa
simples do dia-a-dia numa batalha contra os
elementos: levantou o punho em contestação à força
bruta da natureza e, num ato de desafio, riu na cara
dela. O fato de que ninguém notaria nem se
incomodaria com seu gesto pouco importava para ele
- só o pensamento o fez rir por dentro.
As pelotas de chuva gelada ardiam no rosto e nas
mãos enquanto ele subia e descia com cuidado as

pequenas ondulações do caminho. Mack se divertia
pensando que parecia um marinheiro bêbado indo
com cuidado para o próximo boteco. Quando você
enfrenta a força de uma tempestade de gelo, não
caminha exatamente com ousadia, demons-trando
uma confiança incontida. Mack teve de se levantar
duas vezes antes de finalmente conseguir abraçar a
caixa de correio como se fosse um amigo
desaparecido há muito.
Parou para apreciar a beleza de um mundo engolfado
em cristal. Tudo refletia luz e colaborava para o
brilho crescente do fim de tarde. As árvores no
campo do vizinho tinham-se coberto com mantos
translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu
olhar. Era um mundo radiante e, por um momento,
seu esplendor luzidio retirou, ainda que por apenas
alguns segundos, a Grande Tristeza dos ombros de
Mack.
Demorou quase um minuto para arrancar o gelo que
havia lacrado a tampa da caixa de correio. A
recompensa por seus esforços foi um único envelope
onde havia apenas seu primeiro nome escrito à
máquina do lado de fora; sem selo, sem carimbo e
sem remetente. Curioso, ele rasgou a borda do
envelope, tarefa que não foi fácil, pois os dedos
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começavam a se enrijecer de frio. Dando as costas
para o vento que lhe tirava o fôlego, finalmente
conseguiu arrancar do ninho um pequeno retângulo
de papel sem dobra. A mensagem datilografada dizia
simplesmente:
Mackenzie
Já faz um tempo. Senti sua falta.
Estarei na cabana no fim de semana que vem, se
você quiser me
encontrar.
Papai
Mack se enrijeceu enquanto uma onda de náusea
percorria seu corpo e, com igual rapidez, se
transmutava em ira. Esforçava-se para pensar o
mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela lhe
vinha à mente, seus pensamentos não eram
agradáveis nem bons. Se aquilo era uma piada de
mau gosto, a pessoa realmente havia se superado. E
assinar "Papai" só tornava a coisa ainda mais
horrenda.
— Idiota - resmungou, pensando em Tony, o
carteiro: um italiano exageradamente amigável, com
grande coração mas pouco tato. Por que ele
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entregaria um envelope tão ridículo? Nem estava
selado. Mack enfiou com raiva o envelope e o bilhete
no bolso do casaco e virou-se para começar a deslizar
na direção de casa. Os sopros fortes do vento, que a
princípio haviam diminuído de intensidade, agora o
empurravam, encurtando o tempo necessário para
atravessar a mini geleira que engrossava sob seus
pés.
Estava se saindo bem, obrigado, até chegar à entrada
de veículos, que se inclinava um pouco para baixo e
à esquerda. Sem qualquer esforço ou intenção,
começou a aumentar a velocidade, deslizando com
sapa-tos que tinham praticamente tanta firmeza
quanto um pato pousando num lago gelado. Com os
braços balançando loucamente na esperança de, não
sabia como, manter o equilíbrio, Mack se viu
adernando de encontro à única árvore de tamanho
substancial que ladeava a entrada de veículos - a
única cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns
poucos meses antes. Agora ela se erguia ansiosa para
abraçá-lo, semi--nua e aparentemente desejosa de
uma pequena retribuição. Numa fração de segundo,
ele escolheu o caminho da covardia e tentou
despencar no chão, permitindo que os pés
escorregassem - o que eles de qualquer modo fariam.
Melhor ter a bunda dolorida do que arrancar lascas
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do rosto.
Mas a descarga de adrenalina o fez compensar
exageradamente, e em câmara lenta Mack viu os pés
se erguerem à sua frente, como se puxa-dos para
cima por alguma armadilha da selva. Bateu com
força, primeiro com a nuca, e escorregou até um
monte na base da árvore brilhosa, que pareceu se
erguer acima dele com uma expressão de presunção e
nojo, além de certa decepção.
O mundo pareceu ficar escuro por um instante. Ele
permaneceu ali deitado, tonto e olhando o céu,
franzindo os olhos enquanto a precipitação gelada
esfriava rapidamente seu rosto vermelho. Durante
uma pausa ligeira, tudo pareceu estranhamente
quente e pacífico, com sua cólera momentaneamente
nocauteada pelo impacto.
— Agora, quem é o idiota? - murmurou consigo
mesmo, esperando que ninguém estivesse olhando.
O frio se entranhava rapidamente pelo casaco e pelo
suéter, e Mack soube que a chuva gelada que estava
ao mesmo tempo se derretendo e se congelando
embaixo dele iria logo se tornar um enorme
desconforto. Gemendo e sentindo-se muito velho,
rolou apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Foi então
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀕􀀗
que viu a marca de um vermelho forte traçando sua
jornada desde o ponto de impacto até o destino final.
Como se gerado pela súbita percepção do ferimento,
um martelar surdo começou a subir pela nuca.
Instintivamente ele procurou a fonte das batidas de
tambor e trouxe de volta a mão ensangüentada.
Com o gelo áspero e o cascalho afiado cortando as
mãos e os joelhos, Mack meio engatinhou, meio
escorregou, até conseguir chegar a uma parte plana
da entrada de veículos. Com um esforço
consideravelmente pôde ficar de pé e avançar
cautelosamente, centímetro a centímetro, em direção
a casa, humilhado pelos poderes do gelo e da
gravidade.
Assim que entrou, Mack se livrou metodicamente e
do melhor modo que pôde das camadas de roupa de
frio, com os dedos meio congelados reagindo com
quase tanta destreza quanto se fossem porretes
enormes na ponta dos braços. Decidiu largar aquela
bagunça molhada e manchada de sangue ali mesmo
na entrada, onde a deixara cair, e avançou
dolorosamente até o banheiro para examinar os
ferimentos. Não existia dúvida de que o caminho
gelado havia vencido. Do talho na nuca escorria
sangue ao redor de algumas pedrinhas ainda
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encravadas no couro cabeludo. Como havia temido,
um galo significativo tinha se formado, emergindo
como uma baleia-corcunda rompendo as ondas de
seu cabelo ralo.
Enquanto tentava ver a nuca com um pequeno
espelho de mão que refletia uma imagem invertida do
espelho do banheiro, Mack achou difícil fazer um
curativo. Depois de uma curta frustração, desistiu,
incapaz de obrigar as mãos a irem à direção certa e
sem saber qual dos dois espelhos mentia para ele.
Tateando com cuidado ao redor do tal charcado,
conseguiu tirar os pedaços maiores de cascalho, até
que a dor ficou forte demais para continuar. Pegou
um pouco de pomada de primeiros socorros e tapou o
ferimento do melhor modo que pôde. Em seguida
amarrou uma toalha de rosto na nuca usando um
pouco de gaze que encontrou numa gaveta do
banheiro. Olhando-se no espelho, pensou que se
parecia um pouco com um marinheiro rude saído do
romance Moby Dick. Isso o fez rir, depois se
encolher.
Teria de esperar até que Nan chegasse a casa para
receber qualquer atendimento médico verdadeiro,
uma das muitas vantagens de ser casado com uma
enfermeira. De qualquer modo, sabia que quanto pior
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀕􀀙
fosse à aparência, mais solidariedade iria receber. Se
prestarmos bastante atenção, sempre conseguiremos
descobrir alguma compensação no sofrimento.
Engoliu dois analgésicos para diminuir a dor e
mancou até a porta da frente.
Nem por um instante Mack se esqueceu do bilhete.
Remexendo na pilha de roupas molhadas e
ensangüentadas, finalmente o encontrou no bolso do
casaco. Olhou, voltou para o escritório, achou o
número da agência de correio e ligou. Como
esperava, Annie, a matronal chefe do correio e
guardiã dos segredos da população local, atendeu.
— Oi, por acaso o Tony está aí?
— Oi, Mack, é você? Reconheci sua voz. - Claro
que reconheceu.
— Desculpe, mas o Tony ainda não voltou. Na
verdade, acabo de falar
com ele pelo rádio. Está na metade da Wildcat, nem
chegou à sua casa ainda. O que você quer que eu
diga a ele, se conseguir voltar vivo?
— Na verdade você já respondeu à minha pergunta.
Houve uma pausa do outro lado.
— O que há de errado, Mack? Ainda está fumando
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀕􀀚
muito bagulho, ou
só faz isso nas manhãs de domingo para conseguir
suportar o culto na igreja? - Ela começou a rir,
encantada com o brilho de seu próprio senso de
humor.
— Bom, Annie, você sabe que eu não fumo bagulho.
Nunca fumei e nem quero. - Claro que Annie sabia
disso, mas Mack não podia se arriscar. Não seria a
primeira vez em que o senso de humor de Annie se
transformaria numa boa história que logo se tornaria
um "fato". Ele podia ver seu nome sendo
acrescentado à corrente de orações da igreja.
— Tudo bem, eu falo com o Tony outra hora, não é
importante.
— Então está certo, e fique dentro de casa, que é
mais seguro. Você sabe, um cara velho como você
pode perder o senso de equilíbrio com o passar dos
anos. Do jeito que as coisas andam, talvez Tony nem
consiga chegar à sua casa.
— Obrigado, Annie. Tentarei lembrar do seu
conselho. Falo com você mais tarde. Tchau. - Sua
cabeça latejava cada vez mais, pequenos martelos de
forja batendo no ritmo do coração. "Estranho",
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀕􀀛
pensou, “quem ousaria colocar algo assim na nossa
caixa de correio?" Os analgésicos ainda não haviam
surtido o efeito desejado, mas eram suficientes para
embotar o início de preocupação que ele estava
sentindo, e de repente Mack ficou muito
cansado. Pousou a cabeça na mesa e pensou que
havia acabado de cair no sono quando o telefone o
acordo um susto.
— Ah... alô?
— Oi, amor. Parece que você estava dormindo. - Ele
sentiu na voz de Nan uma animação incomum,
mesmo percebendo a tristeza encoberta que
espreitava logo abaixo da superfície de cada
conversa. Mack ligou a luminária da mesa e olhou o
relógio, surpreso ao constatar que dormira por cerca
de duas horas.
— Ah, desculpe. Acho que cochilei um pouco.
— É, você parece meio grogue. Tudo bem?
— Tudo. - Mesmo estando quase escuro lá fora,
Mack podia ver que a
tempestade não havia amainado. Tinha até
depositado mais uns 5 centímetros de gelo. Os galhos
das árvores pendiam baixos e ele sabia que alguns
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀕􀀜
acabariam se partindo com o peso, principalmente se
o vento aumentasse. - Tive um pequeno entrevero na
entrada de veículos quando fui pegar a
correspondência. Mas, fora isso, tudo bem. E você?
— Ainda estou na casa da Arlene e acho que eu e as
crianças vamos passar a noite aqui. É sempre bom
para a Kate estar com a família... Parece que isso
restaura um pouco o seu equilíbrio. - Arlene era a
irmã de Nan, que morava do outro lado do rio, em
Washington. - De qualquer modo, está escorregadio
demais para sair. Espero que melhore de manhã.
Queria ter chegado a casa antes de o tempo ficar tão
ruim, mas o que se há de fazer? - Houve uma pausa.
- Como está tudo por aí?
— Bem, está absolutamente, espantosamente lindo e
muitíssimo mais seguro de olhar do que de andar,
acredite. Eu certamente não quero que você tente
chegar aqui nessa situação. Nada se mexe. Acho que
nem o Tony conseguiu trazer a correspondência.
— Achei que você já tinha pegado à
correspondência.
— Não, achei que o Tony tinha passado e fui pegar.
E - Mack hesitou, olhando o bilhete sobre a mesa -
não havia nenhuma correspondência. Liguei para
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀖􀀓
Annie e ela disse que o Tony provavelmente não ia
conseguir subir a ladeira. De qualquer modo - ele
mudou rapidamente de assunto para evitar mais
perguntas -, como está a Kate?
Houve uma pausa e depois um longo suspiro.
Quando Nan falou, sua voz saiu num sussurro, e
Mack percebeu que ela estava tapando o bocal do
outro lado.
— Mack, eu gostaria de saber. Por mais que eu tente,
não consigo. É como se eu falasse com uma pedra.
Quando tem gente da família por perto,
ela parece sair um pouco da casca, mas depois some
de novo. Simplesmente não sei o que fazer. Rezei e
rezei para que Papai nos auxi-liasse a encontrar um
modo de ajudá-la, mas... - Nan parou de novo -
parece que ele não está ouvindo.
Era assim. Papai era o nome com que Nan se referia
a Deus e expres- sava o deleite que lhe provocava
sua amizade íntima com ele.
— Querida, tenho certeza de que Deus sabe o que
está fazendo. Tudo vai dar certo. - Essas palavras não
lhe trouxeram conforto, mas ele esperava que
pudessem aliviar a preocupação que sentia na voz
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dela.
— Eu sei - Nan suspirou. — Só gostaria que ele
andasse mais depressa.
— Eu também - foi tudo o que Mack conseguiu
dizer. — Bom, você e as crianças fiquem aí, onde é
seguro. Dê lembranças à Arlene e ao Jimmy e
agradeça a eles por mim. Espero ver você amanhã.
— Eu também. Se cuide e me ligue se precisar de
alguma coisa.
— Tchau.
Mack sentou-se e olhou o bilhete. Era confuso e
doloroso tentar evi-tar
a cacofonia de emoções perturbadoras e de imagens
sombrias que nublava sua mente - um milhão de
pensamentos viajando a um milhão de quilômetros
por hora. Por fim desistiu, dobrou o bilhete, enfiou-o
numa pequena lata que ficava sobre a mesa e apagou
a luz.
Conseguiu encontrar algo para aquecer no
microondas, depois pegou alguns cobertores e
travesseiros e foi para a sala de estar. Ao olhar
rapidamente para o relógio, viu que o programa de
Bill Moyer tinha acabado de começar; era seu
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programa predileto, que ele tentava não perder
nunca. Moyer era uma das pouquíssimas pessoas que
Mack adoraria conhecer: um homem brilhante e
franco, capaz de exprimir com clareza incomum uma
compaixão intensa pelas pessoas e pela verdade.
Quase sem pensar e sem afastar os olhos da televisão,
Mack estendeu a mão para a mesinha de canto,
pegou um porta-retrato com a imagem de uma
menininha e o apertou contra o peito. Com a outra
mão puxou os cobertores até o queixo e se aninhou
mais fundo no sofá.
Iogo o som de roncos suaves encheu o ar, enquanto o
aparelho exibia um estudante no Zimbábue, que fora
espancado por falar contra o governo. Mas Mack já
havia saído da sala para lutar com seus sonhos.
Talvez essa noite não houvesse pesadelos, só visões,
quem sabe, de arvores e gravidade.
A ESCURIDÃO SE APROXIMA
Nada nos deixa tão solitários quanto nossos segredos.
- Paul Tournier
Durante a noite um vento sudoeste soprou pelo vale
de Villamette, libertando a paisagem do aperto gélido
da tempestade. Em menos de 24 horas instalou-se um
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calor de início de verão. Mack dormiu até tarde, um
daqueles sonos sem sonhos que parecem durar
apenas um instante.
Quando finalmente se arrastou do sofá, surpreendeuse
ao descobrir que as loucuras do gelo haviam se
dissolvido tão depressa, mas deliciou-se ao ver Nan e
as crianças aparecerem menos de uma hora depois.
Primeiro veio à bronca previsível por ele não ter
posto as roupas sujas de sangue na lavanderia. Em
seguida, uma quantidade adequada de exclamações
que acompanharam o exame que ela fez no ferimento
da cabeça. O cuidado agradou imensamente a Mack
e logo Nan o havia limpado, remendado e
alimentado. Mas não houve menção ao bilhete
sempre presente em sua mente. Ele ainda não sabia o
que pensar a respeito e não queria envolver Nan em
algum tipo de piada cruel.
As pequenas distrações, como a tempestade de gelo,
eram uma trégua bem-vinda que afastava por
instantes a presença terrível de sua com-panheira
constante: a Grande Tristeza, como ele a chamava.
Pouco depois do verão em que Missy desaparecera, a
Grande Tristeza havia pousado nos ombros de Mack
como uma capa invisível, mas quase palpável. O
peso daquela presença embotava seus olhos e
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curvava seus ombros. Até os esforços para afastá-la
eram exaustivos, como se os bra-ços estivessem
costurados nas dobras escuras do desespero que
agora, de algum modo, tinha se tornado parte dele.
Comia, trabalhava, amava, sonhava e brincava
sempre usando essa vestimenta, como se fosse um
roupão de chumbo. Andava com dificuldade pela
melancolia tenebrosa que sugava a cor de tudo.
Às vezes ele podia sentir a Grande Tristeza se
apertando lentamente ao redor do peito e do coração,
como os anéis esmagadores de uma jibóia,
espremendo líquido dos seus olhos até ele achar que
não existia mais nenhuma gota. Em outras ocasiões
sonhava que seus pés estavam presos em lama
pegajosa, enquanto tinha rápidos vislumbres de
Missy correndo pelo
caminho que descia pela floresta à frente dele, o
vestido vermelho de algodão leve enfeitado pelas
flores silvestres que piscavam entre as árvores. Ela
não fazia qualquer idéia da sombra escura que a
seguia. Ainda que Mack tentasse freneticamente
gritar, nenhum som saía e ele sempre chegava tarde
demais e impotente demais para salvá-la. Sentava-se
empertigado na cama, o suor pingando do corpo
tortu-rado, enquanto ondas de náusea, culpa e
􀀤􀀃􀀦􀁄􀁅􀁄􀁑􀁄􀀏􀀃􀁅􀁜􀀃􀀺􀁌􀁏􀁏􀁌􀁄􀁐􀀃􀀳􀀑􀀃􀀼􀁒􀁘􀁑􀁊 􀀖􀀘
arrependimento rolavam sobre ele como um
maremoto surreal.
A história do desaparecimento de Missy infelizmente
não é como outras que a gente costuma ouvir. Tudo
aconteceu no fim de semana do Dia do Trabalho, o
último brado de alegria do verão antes de outro ano
de escola e rotinas de outono. Mack decidiu
corajosamente levar as três crianças menores para um
último acampamento no lago Walowa, no Nordeste
do Oregon. Nan já estava inscrita num curso de
reciclagem em Seattle, um dos dois garotos mais
velhos havia retor-nado à faculdade e o outro estava
trabalhando como monitor num acampamento de
verão. Mas Mack confiava na própria capacidade de
combinar corretamente conhecimentos de
sobrevivência ao ar livre e habilidades maternas.
Afinal, Nan era uma boa professora e ele, um aluno
aplicado.
O sentimento de aventura e a euforia do
acampamento tomaram conta de todos, e a casa virou
um redemoinho de atividades. Num determinado
ponto da confusão, Mack decidiu que precisava de
uma trégua e se acomodou na cadeira do papai
depois de expulsar Judas, o gato da família. Já ia ligar
a TV quando Missy entrou correndo, segurando sua
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caixinha de plástico transparente.
— Posso levar minha coleção de insetos para
acampar com a gente? - perguntou.
— Quer levar seus bichos? - grunhiu Mack, sem
prestar muita atenção. — Pai, eles não são bichos.
São insetos. Olha, tenho um monte aqui. Relutante,
Mack deu atenção à filha, que, vendo-o concentrado,
começou a explicar o conteúdo do seu "baú" do
tesouro.
— Olha, tem dois gafanhotos. E olha aquela folha, é
a minha lagarta, e
em algum lugar por aí... Ali! Está vendo minha
joaninha? E tenho uma mosca em algum lugar e
umas formigas.
Enquanto ela fazia o inventário da coleção, Mack se
esforçou ao máximo para demonstrar que estava
atento, balançando a cabeça.
— Então - terminou Missy. — Você me deixa levar?
— Claro que sim, querida. Talvez a gente possa
soltá-los na floresta quando estivermos lá.
— Não pode, não! - veio uma voz da cozinha. —
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